Sonhos

Sonhos de uma vida de verão

O reverendo Martin Luther King, há quarenta anos, pronunciou o que se tornaria mais tarde seu mais famoso discurso. Se chama “I Have a Dream” (Tenho um Sonho). É uma peça mestre da arte da retórica. Sou menos sério e de visão mais limitada que o reverendo, claro, mas
decidi que eu poderia ter um sonho também e escrevi um discurso. Nele falo apenas do que sei ou do que me atinge de forma imediata. São coisas insignificantes em um país como o Brasil, mas acredito que na vida, na harmonia cósmica pela qual o mundo flui, são os detalhes que fazem a diferença. Porque das grandes questões da política, briga de cachorro grande, já perdi a esperança faz muito tempo. O discurso está resumido e entre aspas. O integral um dia, quem sabe, terei chances de pronunciá-lo em algum lugar que valha a pena. Utilizo a mesma forma de retórica que Luther King utilizou. Se chama anáfora, e consiste na repetição de uma sentença várias vezes, para reforçar o ponto de vista de quem fala. Então, se algum dia for chamado para me pronunciar em público, o que eu teria a dizer seria mais ou menos assim:

“Quero dizer uma coisa para vocês, meus caros. Quero dizer que apesar da situação deste país, da minha cidade, do meu bairro, eu ainda tenho um sonho. Tenho o sonho de que algum dia as crianças que andam com aquele tênis que tem um par de rodinhas no salto serão consideradas pelo Departamento Nacional de Trânsito, em todo o território, como um perigo e passarão a ser multadas pelos órgãos estaduais competentes a partir do momento em que andarem/circularem fora de suas moradas com esta estranha invenção. Tenho o sonho de que alguma tarde, em algum cinema, aquela pessoa que assiste a um filme e o comenta em voz alta com quem está ao seu lado será sepultada por uma chuva de pipocas jogadas pelos outros espectadores e fará com que essa pessoa, seja qual for sua idade, fique soterrada até o filme terminar. Tenho o sonho de que um dia, aos domingos, os pais da classe média que lotam as churrascarias de nosso país vão desistir de levar as babás para cuidar de seus filhos enquanto se empanturram de picanha fatiada e eles, esses pais, vão dar atenção, conversa e educação a seus próprios filhos. Estabelecendo assim uma ponte de amizade e cumplicidade que se estenderá pela vida toda. E, acima de tudo, não os deixarão correr entre as mesas como se fosse uma coisa apreciada por todos.

Tenho o sonho de que um dia alguém vai poder explicar, vai ter coragem de explicar de verdade, como pode ser que de um dia para outro, literalmente, o tráfego aéreo nos céus, e nos aeroportos, de nosso amado Brasil virou um caos pior do que a avenida 23 de Maio, em São
Paulo, na hora do ‘rush’. Que alguém vai se levantar e dizer: ‘Desculpem, errei’. Tenho o sonho de que um dia os donos dos cachorros que latem dia e noite nos quintais de suas casas vão saber educá-los, assim será possível que todos os vizinhos do bairro possam dormir nas
noites de verão com as janelas abertas sem ter que acordar sobressaltados pelos latidos dos
cachorros solitários. Porque, meus caros, tenho a certeza de que, quando estas pequenas,
minúsculas coisas deixarem de incomodar, será um sinal de que o país começará a estar livre da estupidez que se filtra em nossas vidas e poderemos nos concentrar no que realmente interessa. Em nosso futuro. Que Deus, que um dia já foi brasileiro, coisa que sempre ouvi dizer e até acreditei por muito tempo, nos abençoe e nos ajude a cumprir esta tarefa”... e por aí vai. Faça você mesmo seu discurso, mas usando a anáfora. Sempre.

J. R. Duran (publicado originalmente na Trip nº 153, março de 2007)

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